terça-feira, abril 20, 2010

Item da lista "coisas que devia fazer e não faço"

Mais um fim de dia de trabalho, com um já habitual tardio regresso a casa, depois de apanhar o barco para a margem sul, alguns minutos de comboio e alguns minutos de passeio a pé até casa.
Mala na mão, portátil a tiracolo mas com o cuidado de não estragar o fato de executiva que passa o dia todo escondido debaixo da bata branca.
No céu as nuvens vão-se juntando ao compasso de um vento frio que se faz sentir no intervalo das chuvas de Abril. E ela lá vai se protegendo do vento como pode, escolhendo meticulosamente o trajecto pelas poucas ruas que conhece, do percurso que se habituou a fazer nos últimos meses, desde que se mudou.
À medida que se a próxima de casa a chuva ameaça começar a cair, mostrando-se através de uns esporádicos pingos mais atrevidos. Já na rua onde mora vê a silhueta de um homem ali perto, num canto mais escuro. Esforça-se por manter a cadência do seu passo, para não dar a entender algum incomodo ou receio, à medida que pega logo na chave da porta, para perder o mínimo de tempo a entrar.
Quando se encontra a 5 metros da porta de casa o homem sai do abrigo que lhe proporciona a sombra e deixa-se ser visto. Dá dois passos na direcção dela e pára, à medida que baixa o capuz que lhe cobria a cabeça.


- Tu? - diz ela com um ar surpreso, mas aliviada ao mesmo tempo por ser alguém conhecido, para questionar logo de seguida - …mas que fazes aqui?


- Estava pelas redondezas e lembrei-me de vir perguntar se querias ir tomar um café.


- A sério? Mas… mudaste-te para cá, vieste em trabalho??


- Não, continuo por lá. Simplesmente saí do trabalho, peguei no carro e lembrei-me que talvez quisesses ir beber um café comigo.


- Saíste do trabalho…? Mas são 300 kms!!


- Eu sei…


Ele começa então a mostrar alguns sinais de nervosismo, uma mão bem fundo no bolso das calças ao encolher os ombros e a outra mão a refugiar-se na nuca, um ligeiro pontapé numa pedra que encontrou pelo chão enquanto desviava o olhar para o chão para tentar não mostrar esses mesmos sinais. Balbuciou um pouco, estremeceu mais, e hesitou mas lá continuou a falar.


- …sabes, há muito tempo que reparei em ti. Lembro-me perfeitamente da primeira vez que te vi, com a cara pintada, a roupa suja e um sorriso de quem estava a adorar as brincadeiras que lhe pregavam. Durante uns tempos vi-te com as tuas amigas a divertirem-se e o sorriso de quem estava feliz. Depois desapareceste por uns tempos. Passados uns anos, por força do trabalho voltaste a entrar nos meus horizontes, começámos a falar e quase vivia para ver o teu sorriso todos os dias. E agora vieste embora e sinto falta do teu sorriso… por isso vim perguntar-te… se querias ir tomar um café comigo.


- Mas como deste com o sitio onde moro?


- Foi complicado. Tive de fazer uns quantos telefonemas, ficar a dever alguns favores… ninguém me conseguiu dizer a morada exacta, o melhor que consegui foram umas indicações. Mas vi ali o teu carro estacionado e esperei que pudesses aparecer.


- Pois. Não leves a mal, até ia tomar café contigo mas tenho planos.


- Ah. Pois… claro, devia ter telefonado antes. Tens planos… fica para outra oportunidade, então.


- Pois. Para outra oportunidade.


 E ele voltou-se, cabeça a mirar as pedras que pisava em direcção ao seu carro, sem olhar para trás. Entrou no carro e nesse instante começou a chover como há muito não se via. Ali ficou, uns 5 minutos, com as mãos na parte superior do volante e a cabeça pousada sobre as mãos. Ligou o carro e arrancou de volta a casa, para os longos 300kms do regresso, para os quais não teve a mínima pressa, enquanto pensava na triste figura que tinha acabado de fazer.
Chegou a casa já madrugada alta, depois da mais demorada viagem de 300kms que tinha feito. A chuva não parava de cair, agora de forma menos severa, complacente com a tristeza que percorria todo o corpo daquele homem devastado. Estacionou o carro e encaminhou-se para a sua vazia casa. Meteu a chave na fechadura e atrás de si ouve uma voz.


- Olá.


Virou-se e ali estava ela, encharcada dos cabelos aos pés e com o sorriso que ele tanto admirava.


- Tu, aqui? Mas não tinhas planos?, perguntou ele.


-Telefonei à minha tia a desmarcar. Disse-lhe que tinha de ir ter com a minha vida.


Nesse instante ela pegou-lhe na mão e perguntou:


- Tens café?







quinta-feira, abril 15, 2010

O grande nada eterno



Nada fazia indicar que seria uma noite de lua cheia, tal a escuridão que abraçava a carruagem. Tal devia-se não só às nuvens carregadas que povoavam o céu, mas também ao túnel que as árvores altas do bosque faziam em redor do caminho, uma longa recta que levava até às entranhas do seu palacete.

Calma era coisa que pouco existia naquela viagem: aos constantes solavancos que os buracos do caminho proporcionavam juntavam-se todos os barulhos inerentes às rodas de madeira a pisar pedras e pedregulhos. Como se tal não bastasse, bastas eram as árvores que lançavam seus longos ramos sobre o telhado da carruagem, como se num esforço por arrancar alguém de lá de dentro. Uma ou outra coruja fazia-se ouvir e ao longe podia-se ouvir os uivos dos lobos a imporem o respeito e a lembrarem a sua existência.

Dentro da carruagem, tentado abstrair-se dos solavancos e do barulho, um homem tentava encontrar algum descanso. Eram evidentes as marcas das mais de 4 décadas que já vivera. Na lapela do casaco podiam-se encontrar cravejadas mais de uma vintena de medalhas e sobre os ombros as insígnias de quem passou grande parte da vida a comandar outros homens em campos de batalhas.
Na face algumas cicatrizes a fazer lembrar todas as vezes que viu a morte olhos nos olhos. Também visível o orgulho de nunca ter saído derrotado de tais encontros.

Mas esses dias de batalhas já tinham passado. Agora era apenas um ser anafado recostado e meio dormente na sua carruagem, ainda inebriado dos licores que lhe haviam sido oferecidos na ceia em sua honra.

Cerrava os olhos, quase adormecendo. Um solavanco e despertava novamente. Se havia alguma luminosidade naquela noite que conseguisse passar pelas nuvens e fintar as árvores do bosque, dificilmente passaria os cortinados fechados e o breu era quase total.
Fechou novamente os olhos… mas apenas até ao próximo sobressalto, desta vez um uivo mais próximo desperta-o. Sorri, sabendo que está a salvo dentro da carruagem. Meio acordado, meio embriagado lembra-se de alguns momentos das suas batalhas, uma em particular, em que nem sabe bem como escapou das garras da morte.
Cerra os olhos. Desta vez será mesmo para dormir o resto da viagem…

De repente sente uma valente guinada como se tivesse sido mudado de sítio por obra e graça de desconhecido. Sente-se desorientado, meio aturdido. O sobressalto aquece-lhe o sangue e sem dar por isso está mais sóbrio do que alguma vez estivera, desde a sua retirada das guerras. A carruagem parece ter parado, sem que nada o tivesse previsto. Através das cortinas entra um forte feixe luz que quase lhe fere a vista, fazendo crer que lá fora é dia e o túnel de árvores acabou.

Perplexo, o homem afasta a cortina e a forte luz invade inexoravelmente a carruagem, não o deixando ver nada do lado de fora.
Coloca o braço à frente dos olhos, abre a porta e mete a cabeça lá fora, quando se prepara para dirigindo-se para o condutor da carruagem.
Para sua grande surpresa, do lado de fora continua tudo escuro, a carruagem parada e uma chuva intensa deixa-se abater mesmo por entre as árvores.
- Que se passa?, diz.

O condutor, resguardado por um longo manto preto e um capuz que lhe cobre a cabeça, vira-se lentamente, enquanto se ouve um ligeiro gargalhar.
Uma caveira que não lhe é de todo desconhecida. 
A gargalhada agora estridente é interrompida por uma resposta seca, com uma voz cavernosa que também não lhe é de todo estranha:
- Vim te buscar. Desta vez não tens salvação possível.

Em milésimas de segundo o homem vê uma gigantesca lâmina a percorrer do lado esquerdo para o direito do seu campo de visão. Nesse ínfimo intervalo de tempo sente um calafrio que lhe atravessa a garganta e se espalha pelo resto do corpo sem que possa reagir.

Muitas vezes viu a morte olhos nos olhos e viveu para contar.
Desta vez sorriu e pensou, sem tempo de o dizer em voz alta: "desta vez ganhaste".

O total silêncio prevaleceu e o vazio tomou forma para sempre.

…o grande nada eterno.






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