quinta-feira, abril 15, 2010

O grande nada eterno



Nada fazia indicar que seria uma noite de lua cheia, tal a escuridão que abraçava a carruagem. Tal devia-se não só às nuvens carregadas que povoavam o céu, mas também ao túnel que as árvores altas do bosque faziam em redor do caminho, uma longa recta que levava até às entranhas do seu palacete.

Calma era coisa que pouco existia naquela viagem: aos constantes solavancos que os buracos do caminho proporcionavam juntavam-se todos os barulhos inerentes às rodas de madeira a pisar pedras e pedregulhos. Como se tal não bastasse, bastas eram as árvores que lançavam seus longos ramos sobre o telhado da carruagem, como se num esforço por arrancar alguém de lá de dentro. Uma ou outra coruja fazia-se ouvir e ao longe podia-se ouvir os uivos dos lobos a imporem o respeito e a lembrarem a sua existência.

Dentro da carruagem, tentado abstrair-se dos solavancos e do barulho, um homem tentava encontrar algum descanso. Eram evidentes as marcas das mais de 4 décadas que já vivera. Na lapela do casaco podiam-se encontrar cravejadas mais de uma vintena de medalhas e sobre os ombros as insígnias de quem passou grande parte da vida a comandar outros homens em campos de batalhas.
Na face algumas cicatrizes a fazer lembrar todas as vezes que viu a morte olhos nos olhos. Também visível o orgulho de nunca ter saído derrotado de tais encontros.

Mas esses dias de batalhas já tinham passado. Agora era apenas um ser anafado recostado e meio dormente na sua carruagem, ainda inebriado dos licores que lhe haviam sido oferecidos na ceia em sua honra.

Cerrava os olhos, quase adormecendo. Um solavanco e despertava novamente. Se havia alguma luminosidade naquela noite que conseguisse passar pelas nuvens e fintar as árvores do bosque, dificilmente passaria os cortinados fechados e o breu era quase total.
Fechou novamente os olhos… mas apenas até ao próximo sobressalto, desta vez um uivo mais próximo desperta-o. Sorri, sabendo que está a salvo dentro da carruagem. Meio acordado, meio embriagado lembra-se de alguns momentos das suas batalhas, uma em particular, em que nem sabe bem como escapou das garras da morte.
Cerra os olhos. Desta vez será mesmo para dormir o resto da viagem…

De repente sente uma valente guinada como se tivesse sido mudado de sítio por obra e graça de desconhecido. Sente-se desorientado, meio aturdido. O sobressalto aquece-lhe o sangue e sem dar por isso está mais sóbrio do que alguma vez estivera, desde a sua retirada das guerras. A carruagem parece ter parado, sem que nada o tivesse previsto. Através das cortinas entra um forte feixe luz que quase lhe fere a vista, fazendo crer que lá fora é dia e o túnel de árvores acabou.

Perplexo, o homem afasta a cortina e a forte luz invade inexoravelmente a carruagem, não o deixando ver nada do lado de fora.
Coloca o braço à frente dos olhos, abre a porta e mete a cabeça lá fora, quando se prepara para dirigindo-se para o condutor da carruagem.
Para sua grande surpresa, do lado de fora continua tudo escuro, a carruagem parada e uma chuva intensa deixa-se abater mesmo por entre as árvores.
- Que se passa?, diz.

O condutor, resguardado por um longo manto preto e um capuz que lhe cobre a cabeça, vira-se lentamente, enquanto se ouve um ligeiro gargalhar.
Uma caveira que não lhe é de todo desconhecida. 
A gargalhada agora estridente é interrompida por uma resposta seca, com uma voz cavernosa que também não lhe é de todo estranha:
- Vim te buscar. Desta vez não tens salvação possível.

Em milésimas de segundo o homem vê uma gigantesca lâmina a percorrer do lado esquerdo para o direito do seu campo de visão. Nesse ínfimo intervalo de tempo sente um calafrio que lhe atravessa a garganta e se espalha pelo resto do corpo sem que possa reagir.

Muitas vezes viu a morte olhos nos olhos e viveu para contar.
Desta vez sorriu e pensou, sem tempo de o dizer em voz alta: "desta vez ganhaste".

O total silêncio prevaleceu e o vazio tomou forma para sempre.

…o grande nada eterno.






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