terça-feira, agosto 23, 2005

Deambulações nocturnas


Toda a vida temera tornar-se naquilo. Toda a vida debatera-se consigo próprio para o evitar. Mas acabou por não conseguir, e era isso mesmo que ele era, um velho solitário, sentado no mesmo banco alto de todas as noites, encostado ao balcão do diminuto bar onde sempre passava o tempo, até se lembrar de ir para a sua casa vazia.
A vida tinha sido algo madastra consigo. Um acidente rodoviário havia levado a sua amada, há muitos anos atrás... dizem que se foi sem sentir nada. A sua filha... há muito que tinha deixado de dar notícias, a não ser um distante telefonema pelo Natal e pelo seu aniversário, que era passado, ano após anos, à beira do lago, no parque da cidade, observando “os pássaros a passearem ou os casais a pavonearem-se” como gostava de pensar para si próprio.
As conversas que mantinha resumiam-se a discutir os resultados do futebol às 2ªs feiras à noite, com o seu barman preferido... o único que ainda o aturava. Nas restantes noites perdia-se no fundo do copo que girava incessantemente sobre o balcão com a ponta dos dedos, ou contava os segundos a passar enquanto batia levemente no copo com a aliança, que ainda e sempre carregava no dedo anelar. Fazia pequenas pausas para beber mais um gole. Era a altura em que levantava a cabeça ligeiramente, fitava as garrafas expostas nas prateleiras, os copos pendurados de cabeça para baixo, bem por cima de si próprio e ao longo do balcão. Abanava ligeiramente a cabeça em desaprovação quando se via no espelho em frente a si.
As mesmas vozes, os mesmos silêncios, as mesmas sombras todas as noites a desfazerem-se em mais um e outro copo. No espelho à sua frente podia decorar as rugas na testa e ao lado dos olhos. Certamente do sol que apanhara em todas as tardes de Primavera ou Verão que passara junto ao lago. Dos olhos até ao queixo uma estranha e inesperada lisura na pele, a esconder o último sorriso que se tinha escapado há já tantos anos, onde não se encontrava uma única ruga que mantivesse registo desse momento.
Fazia-se tarde.
Levantou-se do banco alto e dirigiu-se para a porta de saída, depois de deixar uma nota em cima do balcão.
- Vou indo, Tomé.
- Vens cá amanhã? – perguntou o barman, apesar de saber que ele viria... vinha sempre.
- E para onde mais havia de ir? – respondeu, cabisbaixo, enquanto passava pela porta.

Na manhã seguinte encontraram o seu corpo, num recanto mais escuro da cidade, no caminho habitual que fazia para a sua casa vazia. Dois golpes de navalha tinham lavado a sua alma. Por 2 moedas de euro. Era o que tinha na altura... os delinquentes não acreditaram, e acabou assim.

Encontraram-no sentado no chão, encostado à parede com as mãos sobre as feridas abertas, com um sorriso na face que ninguém conseguia recordar de outros tempos, um sorriso de alguém que finalmente encontrou quem pusesse fim ao seu sofrimento.

Por 2 euros comprara a felicidade.

...................(da autoria de Nelson Gonçalves, 22/08/2005)







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