quarta-feira, dezembro 12, 2007

"Do que estás à espera...?"

A noite dava os seus primeiros sinais de cansaço. Aos mais apressados raios de luz do dia que se anunciava juntava-se a rotina que se confundia com o dia-a-dia que Henrique levava. O som irritante do despertador servia de ponto de partida e não havia volta a dar. Henrique saía de casa sem tomar o pequeno-almoço, ou não fosse um café o seu destino de sempre, onde aproveitaria para mordiscar um panado que tivesse sobrado do dia anterior e beber um galão bem quente.

O inicio do dia de trabalho era monótono. Verificar se a limpeza do fim da noite anterior tinha sido bem feita, se os tampos de vidro das mesas estavam realmente transparentes, se as cadeiras estavam bem alinhadas e os cinzeiros limpos. Começar a receber fornecedores e orienta-los para a cozinha, colocar os bolos frescos no mostruário e repor o stock de bebidas na arca frigorífica, entre muitas outras coisas e detalhes. Um ritual que apenas terminava com a constatação de que eram horas de abrir as portas ao público.

Os primeiros clientes eram invariavelmente as pessoas que iam de viagem, carregados de malas, maletas e mais mochilas e sacos que espalhavam pelo chão junto às mesas em que se sentavam, deixando pouco espaço para quem tem de fazer malabarismos com uma bandeja cheia de chávenas e copos altos, mais bolos e latas de refrigerante. Pouco depois começavam a vir os empregados de algumas das lojas em redor, que faziam os possíveis por comer qualquer coisa antes de abrirem as suas próprias portas à clientela snob que pululava de loja em loja, esbanjando o dinheiro em trivialidades. Também essa clientela havia de lá parar, no café. E seria possível ouvir o desdém com que conversavam sobre uns e outros ou como se comportavam. Andavam pela rua com o nariz tão empinado que nem se davam conta das fezes de cão que pisavam… tudo em nome da pose e postura supostamente superior, que uma qualquer herança ou casamento de conveniência fez subir à cabeça. Nada que perturbasse muito Henrique.

Pouco antes das 9 da manhã era a altura do sr. Baptista vir comer o seu pastel de nata, juntamente com um café curto e sem açúcar, antes de ir para o banco onde era gerente, ali mesmo na porta ao lado. Pouco depois juntava-se-lhe Margarida, caixa no mesmo estabelecimento e cerca de 25 anos mais nova que ele. Pedia sempre um bolo de arroz e um galão “nem muito quente nem muito frio” dizia ela. Corriam rumores que tinham um caso amoroso… nada que a sra. Baptista não desconfiasse, também ela cliente do estabelecimento, mas a horas mais tardias, com as suas amigas de compras.
Pouco havia para recordar desses episódios.

Henrique preferia passar o tempo à espera das 11 horas da manhã e das 4 da tarde. E enquanto essas horas não chegavam e os clientes escasseavam, ia-se entretendo com a leitura dos clássicos de literatura. Não que tivesse sonhos de grandes voos mas achava que um pouco de cultura fazia sempre bem e os livros permitiam-lhe imaginar lugares que nunca teria possibilidade de ver.
Às 11 da manhã, mais minuto menos minuto, era a altura em que o café ganhava uma vida nova, por completo. Tratava-se da Aurora, empregada da loja de lingerie que se encontrava mesmo em frente ao café, que chegava para um ligeiro lanche. Aurora exercia um fascínio desmedido em Henrique, que pouco mais fazia que fantasiar com o sorriso calmo e sereno da rapariga.

Aurora era jovem, teria pouco mais que 19 anos, e o corte de cabelo curto não conseguia disfarçar uma sensualidade exuberante, acompanhada por um brilho de olhar sincero e feições gentis. Por vezes com um ar tímido em trejeitos de criança, outras vezes mais atrevida e provocadora mas apenas nas mentes de quem lhe tinha um desejo mais carnal. Na realidade, tinha um jeito peculiar de se comportar e parecia movimentar-se por processos delineados, com uma premeditação e objectivo único de espicaçar os homens que a fitavam. E Henrique era um deles. Todos os dias. Pouco tempo demorou Henrique a aperceber-se de pequenos detalhes nela: a forma como cruzava as pernas, sempre na direcção do balcão; o pequeno sinal de nascença a meio do pescoço alvo, por baixo da orelha esquerda, onde dois pequenos e reluzentes brincos se deixavam repousar, por cima um do outro, um vermelho outro azul; a maneira como arrumava sempre a sua mesa, para facilitar o trabalho a Henrique e até a forma peculiar como deixava dobrado o guardanapo de papel, todos os dias, sempre da mesma forma.

Na parte da tarde o ritual repetia-se, sem alterar grande coisa.
Às 8 da noite acabava o turno de Henrique, que metia-se no metro de volta casa, onde aquecia a comida que trouxera do café e que lhe serviria de jantar. Depois punha a tocar um cd de jazz e ficava a ler até às 10 da noite, altura em que se deitaria para na madrugada seguinte começar tudo de novo.

O tempo passou, vários meses, sempre com a mesma rotina. As mesmas pessoas de sempre e algumas pessoas diferentes do habitual, apenas de passagem efémera.

Um dia Aurora falou-lhe pela primeira vez sem ser para lhe pedir o lanche que habitualmente pedia na parte da tarde. “Este é o meu último lanche aqui. A loja fechou agora mesmo e já nem volto para lá.” disse ela, enquanto esperava que Henrique acabasse de apontar o pedido da mesa ao lado. “Gostava de acreditar que o facto de ter vindo trabalhar para esta rua tivesse um propósito superior a um simples trabalho temporário…” continuou ela. Henrique, pessoa de poucas palavras não soube que lhe responder nem se havia de responder. Ela, sem obter grande reacção da outra parte, baixou a cabeça e terminou o seu lanche. Pediu a conta e saiu em passo apressado, sem se despedir.
Henrique pegou no troco e, ao limpar a mesa, o guardanapo de Aurora caiu no chão abrindo-se como uma flor, deixando a descoberto uma mensagem... onde se lia:

“Do que esperas para sermos felizes…?”




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