A noite estava a chegar ao fim. No sitio do costume bebia-se até ao fundo dos copos, onde as sinas se deixam escrever para quem as sabe ler.
Nunca a tinha visto assim, no meio da habitual confusão mundana que os rodeava, com o cigarro a tremer-lhe na mão e uma lágrima revoltada a escorregar-lhe pela face. E ele não se conseguiu conter mais.
Chegou perto dela, agarrou-lhe na mão que ela tinha livre, colocou a outra mão sobre o ombro dela e suspirou um “
Olá”.
Ela olhou para ele, com os olhos vermelhos de quem tenta prender uma tempestade de revoltas, em vez de as soltar livremente num choro sentido. “
Desculpa...”, disse.
Antes que ela completasse a frase, ele interrompeu-a para que não caíssem no erro de dar demasiada importancia a palavras que nunca a teriam. Nem no erro de fazer demasiadas perguntas desnecessárias.
“
Foge comigo amanhã, de manhã. Apanhamos o barco e vamos por aí, à descoberta do nosso mundo, fazendo o nosso caminho e construindo a nossa própria felicidade. Longe deste lugar de infortunios e desgraças. Amanhã, às 9:15 no cais... Espero por ti.”, disse ele.
Ela ficou impavida, imóvel como só uma estatua sabe ser, surpreendida por aquele pedido tão repentino. Ele afastou-se, sem dizer mais nada e sem desviar o olhar dela, e foi embora enquanto ela, com a ponta dos dedos, travava a lágrima que lhe percorria a face.
Na manhã seguinte lá estava ele, com aspecto de louco. Mal tinha dormido, a pensar que ela acedesse ao seu pedido. E também a morrer de medo que ela não o fizesse... Nem se tinha arranjado minimamente, com receio de não chegar ao cais a tempo e que ela tivesse estado lá sua espera e tivesse desistido por ele não aparecer à hora combinada.
Ele tinha uma simples mochila nas costas com pouca coisa que levar. Afinal a unica coisa que lhe importava levar dali era ela, daquele mundo que a maltratava, que a feria... daquele mundo que também o ignorava desde sempre.
Aproximava-se a hora do barco e nada. Sabia que tinha passado muito pouco tempo desde que fizera o convite, e que o cansaço a pudesse levar a não acordar a tempo. No entanto não deixava de estar ali, à espera dela, enquanto um e outro cigarro se ia consumindo na ponta dos seus dedos. É incrivel a velocidade com que os cigarros se desfazem em cinza, enquanto se espera por algo ansiosamente. Quase não lhes tocava com os lábios, sequiosos por a quererem ver aparecer lá ao fundo, ao virar da esquina.
Eram 9:27 e o barco não esperou mais... e partiu, deixando-o ali, prostrado à evidencia de que ela não estava lá. Ali se deixou ficar mais uns minutos, não muitos. Apagou o ultimo cigarro. Naquele instante deixaria de fumar, prometera a si mesmo.
Apontou os olhos ao chão, soltando todo o seu desalento ao vento e lá foi de volta a casa. Deu alguns passos, deixando para trás o cais.
“
Temos de ir de barco? Quando é o próximo?”, disse uma voz conhecida, por trás de si.
Virou-se o mais depressa que pôde. Ali estava ela, com a face corada de vergonha, mas com um sorriso capaz de fazer crescer uma floresta no mais seco deserto do mundo.
“
Não, não temos de ir de barco.” , respondeu contente por vê-la.
“
Ainda bem, enjoo com alguma facilidade.”
Com a mão esquerda ele pegou-lhe na mão direita e foram em direcção à estação dos comboios.
Enquanto caminhavam, ela olhou para ele e perguntou, ainda com o seu melhor sorriso vestido:
“
Como te chamas?”